Capítulo 3

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Raramente Alves saia de casa, exceto quando ia para a praia. Em uma dessas vezes que saiu, foi para comprar cigarros. Passando pela única estrada que cortava o lugarejo - e que era o próprio lugarejo –, chegando ao bar, fora abordado por um de seus frequentadores que, curioso por vê-lo por ali, perguntou por que ele morava naquela casa que ficava tão distante e de difícil acesso. Ainda bem que tal encontro se dera no bar e aquele homem estava em total embriaguez, de modo que não precisou responder.
No caminho de volta a casa, Alves estava pensando no porquê de tal pergunta e na resposta que teria dado. Fora morar ali porque queria conhecer somente os fatos essenciais da vida, longe de tudo que fosse supérfluo. Queria encarar a vida de frente e sem medo. Contrariando o que se pode pensar, ele não estava fugindo ou querendo transformar o mundo num bom lugar para viver. Viveria nele, quer se mostrasse bom ou mau. Sugar sua seiva é o que ele pretendia. Já tendo estudado os livros, agora pretendia estudar a natureza e os homens.
Pafúncio caminhava ao seu lado com a língua de fora, demonstrando cansaço, enquanto subiam pelo estreito caminho que deixava a estrada e que os levaria de volta a casa, depois que atravessassem, mais adiante, uma nesga de mata que ocultava a praia dos olhares turísticos.
O que Alves só mais tarde viria saber, era a mistura de curiosidade e mistério que envolvia aquele lugar, muito antes dele ali chegar. Curiosidade que veio aumentar, quando ele mudou-se para aquela casa há muito abandonada. Os moradores da região diziam que, de vez em quando, aparecia vindo não se sabe de onde, uma claridade que iluminava intensamente o céu por instantes e logo em seguida desaparecia. Fosse noite ou fosse dia, a intensidade da luz era a mesma, e sempre azulada.
Sem saber, fora numa noite dessas que Alves recebeu a visita de um homem com o qual ficou conversando até um pouco antes do dia raiar. A conversa começara depois que aquele homem aparecera no portão, pedindo um copo d’água, que Alves serviu-lhe e em seguida sentaram nas únicas cadeiras, na pequena varanda da casa. Chovia naquela noite e o visitante comentara sobre o clima.
- Se os homens conhecessem mais sobre a história, saberiam mais sobre o tempo – disse o homem.
Sem entender, Alves olhou para o céu e a chuva que caia e nada viu que justificasse tal observação. Era por estas outras coisas fúteis, que se afastara da multidão. Mas, já que estavam ali e chovia ele não queria ser rude e mandá-lo embora. Porém, resolveu prosseguir a conversa.
- Por que diz isso? – Disse Alves, sem nada esperar daquela conversa.
- Os homens não se guiam pela prática de observações tiradas da história – falou o homem, quase repetindo as mesmas palavras.
- Isto o senhor já disse – falou Alves, sem poder disfarçar sua impaciência.
- Olha, seu moço, os homens se guiam pela rotina teórica, que não leva a qualquer resultado real. Acreditam cegamente nas leis científicas que lhes são inculcadas. São meras teorias – disse o homem.
Alves não esperava aquele tipo de resposta rebuscada vindo daquele homem de aparência simples. Ainda sem entender, mas agora demonstrando interesse pelo que o homem dissera e mais ainda, pelo modo como dissera, Alves continuou calado à espera que ele continuasse.
- Os intelectuais ficam cheios de orgulho com esses conhecimentos, e sem os examinar para saber o que é verdadeiro ou não, põem em ação todos os dados da ciência, sem saberem como foram reunidos, para guiar seu espírito pelo rumo que esses desconhecidos querem – disse o homem.
- É curioso o senhor falar estas coisas, porque esta é uma das razões que me fizeram deixar muitas coisas para trás e tentar ultrapassar essas barreiras invisíveis e que me impediam um modo de viver mais amplo – disse Alves.
- O senhor quer simplificar a vida? – Disse o homem.
- Sim, quero entender o Universo de forma menos complexa – disse Alves.
- Se entendi o que está por detrás dessas palavras, o senhor quer renegar todo o conhecimento que adquiriu até aqui, durante toda a sua vida. Se fizer isso, o que lhe sobrará? – Perguntou o homem.
- Somente eu e tudo o que me rodeia. Mas, tudo que vejo já foi nomeado e pelo sentido dado a elas. Por exemplo, a cadeira na qual estou sentado. “Cadeira” é uma palavra que tem seu conceito estabelecido. Serve para sentar, em qualquer lugar do mundo – disse Alves.
- Mas, que outro nome daria a ela? – Disse o homem, enquanto respingos de chuva salpicavam o casaco de couro marrom que vestia.
- Poderia chamar de “mesa”, ou “pedra”... – disse Alves.
- E acaso estes nomes já não existem com seus conceitos inerentes? – Perguntou o homem.
- Poderia embaralhar as letras e reordená-las. Seria um nome novo, não seria? – Disse Alves, sem dar importância às palavras que usara.
- Mas, as letras continuariam a existir, isto é, as letras seriam as mesmas – disse o homem.
- E se não lhe desse nenhum nome? – Disse Alves, sem saída.
- Se conseguir fazer isso com os nomes de todas as coisas já existentes, podemos dizer que limparia sua mente. Ela ficaria tão vazia, que talvez nem pensar seria possível – disse o homem, cujo casaco, agora todo molhado, rebrilhava.
- Seria recomeçar do zero, qual novo Adão. Pois, foi ele que deu nome a cada uma de todas as coisas que existiam, segundo a Bíblia – disse Alves.
- E o Alcorão – completou o homem.
- Juntamente com Eva, foram os primeiros que tiveram acesso ao conhecimento. Não é isto que os homens dizem? Não é esta a causa da infelicidade em que vive o ser humano? – Disse o homem.
- Dizem também que é a quinta-essência do universo; seja lá o que isso queira significar... – Disse Alves.
- Quem criou o primeiro ser vivo? – Disse Alves.
- Aquilo que existe sem ter sido criado, sem ter tido princípio, e não tem representação física e representá-lo seria um sacrilégio, uma vez que ele não tem forma – disse o homem.
- E onde viviam estes seres, o criado e o incriado? – Disse Alves.
- Dizem os Sacerdotes que “no princípio ele criou os céus e a terra” – disse o homem.
- O ser incriado é chamado de Deus, Energia Cósmica ou outro nome equivalente que criou o mundo do nada. O ser humano precisa de alguma referência. Mas qual? – Disse Alves.
- Alguns estudiosos supõem que o Universo teria sido criado pelo mundo imaterial ou espiritual, como queira chamar. Quando é dito que o Incriado criou o Universo, isso não é nada mais do que uma expressão majestática, concebida pelo homem devido às múltiplas e ilimitadas manifestações desse ser. A intenção é dar ao homem a consciência de que tudo se deve à Criação Divina – disse o homem.
- Por outro lado, os antigos atribuem a existência do mundo ao resultado das lutas dos múltiplos Deuses, ou como nascido da casualidade e por vontade repentina, sem justificativa; por capricho – disse Alves.
- Dizem os monoteístas que quando o Incriado criou a Terra, viu que ela era “vã”. A palavra “vã” significa assombro e consternação pela vacuidade em que ela se encontrava, então, aparentemente por misericórdia, através do alento exalado por Sua boca, sobre a face das águas, deu o alento da vida à matéria inanimada – disse o homem.
- A terra já estava criada quando o homem, como é conhecido hoje, foi criado. Mas, como era antes?  Digo, antes do surgimento do homem? O que causa surpresa, é que se eu responder a esta pergunta, estarei repetindo um conhecimento aprendido, que me foi passado pelos que vieram antes de mim. Talvez geneticamente, desde o princípio, se quisermos considerar o momento logo após a criação do primeiro homem – disse Alves.
- Então, podemos dizer que Deus criou outros iguais a si e o mundo foi povoado por Deuses – disse o homem.
- Desde que cheguei a este lugar, tem me ocorrido pensamentos que podem ser chamados, no mínimo, de diferentes dos usuais. Por exemplo, tenho pensado se houvesse uma porta? Um portão que separasse mundos diferentes, mas que existem aqui mesmo, paralelamente a este mundo em que estamos agora a conversar? Um portal dimensional? – Disse Alves.
- Quer dizer uma entrada ou saída  - depende do lado em se está -, para outro mundo? – Disse o homem.
- Sim, um portão numa muralha invisível aos nossos olhos – disse Alves.
- Que tipo de mundos essa muralha estaria separando? A morte da vida, o bem do mal ou um mundo de seres diferentes do homem? – Disse o homem.
- Tenho sonhado muito com isso, isto é, com um muro muito alto. Aliás, na verdade, não posso afirmar que é sonho, pois, mesmo quando estou acordado tenho esta mesma sensação. Sinto que há algo mais.  Desde a minha juventude, quando estive aqui pela primeira vez, algo diferente e que não sei o que era me atraiu neste lugar – disse Alves.
- Talvez possamos pensar que a abertura de um portal pode indicar a abertura da mente ou da consciência, a fim de serem descobertas os segredos ou as informações valiosas ali contidas. Pode indicar o acesso a algo grandemente desejado – disse o homem, que puxara sua cadeira para junto de Alves e que, olhava fixamente nos olhos, continuou a falando.
- Pessoas que passaram pela experiência após a morte e voltaram a seus corpos, relataram que pouco antes de morrerem, tiveram a impressão que o espírito queria facilitar a entrada para uma nova fase da existência – disse o homem.
Neste momento, a atenção de Alves foi desviada para algo que já acontecera outras vezes, embaçado ou fora de foco, via ele um portão ladeado por colunas. Uma espécie de caminho coberto, com cerca de quinze metros de largura, com fileiras de colunas de sete metros e meio de altura cada, ao longo do lado oriental e uma construção que lhe pareceu ser um santuário, onde pessoas reunidas eram ensinadas por um ancião.  Alves pode ouvir o que ele acabara de dizer: “Haja luz e houve luz”.

Continua...

EP. Gheramer




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